
Matéria publicada hoje no Jornal O Globo dá destaque à batalha judicial que se arrasta há 60 anos, envolvendo terreno de 153 mil metros quadrados ao longo da Avenida Salvador Allende, no Recreio dos Bandeirantes.
“RIO — A Procuradoria Geral do Estado (PGE) batalha para impedir o pagamento do maior precatório por desapropriação de terras da história do Rio de Janeiro. O título, em cálculos atualizados, vale R$ 1 bilhão, desembolso desastroso para um estado em recuperação fiscal. Os procuradores do estado, para convencer a Justiça a negar o pedido, alegam que os supostos donos apresentaram certidões fraudadas para atestar a propriedade.
Iniciado há 60 anos, ainda no Estado da Guanabara, o processo de desapropriação de terreno de 153 mil metros quadrados ao longo da Avenida Salvador Allende, no Recreio dos Bandeirantes, era visto quase como uma lenda urbana, dada a quantidade de reviravoltas, o tempo decorrido e de pessoas que se apresentaram como donas. Porém, decisões recentes da Justiça a favor dos herdeiros de dois reclamantes do precatório acenderam um sinal de alerta na PGE ao tornar real a chance de vitória dos adversários.
O precatório é reivindicado pelos herdeiros de Holophernes Castro e Pasquale Mauro, sendo esse um notório grileiro da Barra da Tijuca. Eles alegam ter adquirido o terreno do Banco de Crédito Móvel em 1966. Já obtiveram uma vitória na 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio, que reconheceu o direito à indenização bilionária, e começaram a ganhar a também entre os cinco ministros da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde dois votaram a favor dos herdeiros e um contra. Este agravo em recurso especial está suspenso por pedido de vista da ministra Assusete Magalhães.
Os principais trunfos da PGE para virar o jogo são as próprias escrituras apresentadas pelos supostos proprietários. Nos documentos, o terreno é identificado como “Gleba 1 da quadra 8 do PAL 5596”. De acordo com os procuradores do Estado, esse PAL (projeto aprovado de loteamento), nos arquivos da prefeitura municipal, fica em Bangu. Nunca foi da área reivindicada no Recreio dos Bandeirantes, que está registrada apenas como PA 5596, sem jamais ter sido loteada, argumenta a PGE.
Os projetos aprovados de loteamento (PAL) correspondem ao loteamento, desmembramento ou remembramento de terrenos com identificação, descrição e dimensões de áreas de lotes ou quadras, quando existir. Estes projetos são feitos por iniciativa particular, ou seja, pelos proprietários das terras e só existem quando são submetidos à aprovação da prefeitura.
— Marotamente, acrescentaram a letra “L” depois do PA, dando a entender que a área foi oficialmente loteada. Nunca foi. Isso é fraude — alega um dos procuradores da causa.
Um cochilo, entretanto, fragilizou o posicionamento da Procuradoria. No ano passado, em despacho de rotina, peritos da Assessoria de Perícias, Cálculos e Avaliações (APCA) da PGE reconheceram que a unidade da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), na Avenida Salvador Allende s/n, no Recreio, invadiu a área vizinha de uma firma de logística. A empresa pertence aos herdeiros de Pasquale Mauro, que pretendem usar o documento como prova judicial de que o estado reconhece a titularidade da família e direito de levantar o precatório de R$ 1 bilhão.
Ao descobrir a existência do documento, o procurador-geral do Estado, Bruno Dubeux, requisitou nova perícia e planeja ir a Brasília, ao final do recesso do Judiciário, para explicar aos cinco ministros da Segunda Turma do STJ que os Mauro nunca conseguiram provar a titularidade dessas terras.
Pelo regulamento interno da PGE, todas as perícias produzidas pela APCC precisam passar, antes de sair do órgão, pelo gabinete do procurador-geral. Por alguma razão que Dubeaux ainda desconhece, o parecer referente ao CNEN-Recreio foi encaminhado direto para a Secretaria de Assuntos Econômicos, órgão solicitante da perícia. O procurador, porém, afastou a hipótese de má-fé. Para ele, os peritos não tinham a menor ideia de que os vizinhos supostamente invadidos eram os herdeiros de Pasquale Mauro e que usaram o parecer com outra finalidade, muito diferente de uma briga pela localização da cerca que divide as duas empresas.
Com o parecer da APCA, os advogados dos herdeiros apostam na retomada da votação e na vitória judicial em Brasília. O procurador-geral, porém, está confiante, pois não acredita que a manobra seja acolhida pelo STJ:
— Reconhecemos o direito a indenização. O dinheiro está até depositado. Mas será pago apenas a quem comprovar a titularidade, o que jamais aconteceu.
A ação de desapropriação foi ajuizada em 1962 pelo então governador do Estado da Guanabara, José Sette Câmara, com o objetivo inicial de criar um parque à beira da Lagoa de Jacarepaguá. Como o projeto nunca saiu do papel, as áreas sofreram redução e foram cedidas a unidades da CNEN e do Instituto Estadual do Ambiente (Inea).
No cadastro da Prefeitura, originalmente, as áreas desapropriadas pertenciam ao extinto Banco de Crédito Móvel (BCM). Porém, para ter direito à indenização, os donos teriam de comprovar matrícula em Registro Geral de Imóveis. Na briga judicial que se arrasta há seis décadas, os supostos herdeiros dos direitos do BCM tiveram derrotas iniciais na 7ª Vara de Fazenda Pública e na 4ª Câmara Cível, que rechaçaram as provas apresentadas.
O jogo, porém, começou a virar quando o relator do caso na 4ª Câmara Cível, desembargador Reinaldo Pinto Alberto, se afastou por licença médica e seu substituto, Marco Antônio Ibrahim, mudou o entendimento sobre o pleito. Em decisão seguida pelo colegiado, ele entendeu que, “como se mostra evidente, não há motivo razoável para que o Juízo de 1º grau mantenha o sobrestamento do pagamento do precatório porque já foram esgotados os meios de comprovação da propriedade da área pelo agravante Pasquale Mauro, Espólio de Holophernes Castro e Lydia Teixeira de Castro”.
Restou ao estado levar a questão para Brasília, mas o cenário no Superior Tribunal de Justiça (STJ) não é promissor. Em votação que pode ser reiniciada logo após o recesso, os herdeiros ganham por 2 a um num total de cinco votantes. Como não há dúvidas quanto à legitimidade da desapropriação, mas sobre quem tem o direito a ser indenizado, parte do dinheiro já foi depositada em conta judicial.
Além dos supostos detentores do título, o maior precatório das desapropriações estaduais fez crescer os olhos de outros atores da batalha judicial, incluindo o próprio BCM, que alega nunca ter repassado a escritura para as famílias de Pasquale Mauro e Holophernes Castro e que continua em atividades. A luta pelo levantamento do crédito, porém, parece chegar ao capítulo final de um thriller sobre caça ao tesouro em pleno Recreio dos Bandeirantes.
Procurados, os advogados dos herdeiros de Pasquale Mauro e Holophernes Castro não responderam aos questionamentos do GLOBO.”
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